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Perdas irreparáveis, luto e desamparo do poder público: Recife, Jaboatão e Olinda dois anos após as chuvas de 2022

histórias de pessoas que foram impactadas pelo evento climático ocorrido entre os dias 28 e 31 de maio de 2022, que entrou para a história de Pernambuco e do Brasil como uma das maiores tragédias urbanas da década.

10 de dezembro de 2024 | por

 “Muita gente morreu esperando para ter uma nova casa, uma moradia digna,  porque depois da tragédia o coração não aguentou, as pessoas ainda estão adoecidas. Perdemos muita gente”. O depoimento da líder comunitária Dalva Damares, 68 anos, expõe as perdas materiais e imateriais que afetaram moradores e moradoras de bairros socialmente vulneráveis da Região Metropolitana do Recife em decorrência das intensas chuvas de 2022. O evento climático, ocorrido entre os dias 28 e 31 de maio daquele ano, entrou para a história de Pernambuco, mas marcou principalmente a vida de pessoas de áreas ribeirinhas e de encostas, que ainda juntam os destroços enquanto lidam com riscos permanentes.

Com incentivo do Instituto FALA, a Afoitas desenvolveu uma reportagem especial que percorreu três comunidades que sentem, no cotidiano e na saúde mental, os efeitos do colapso ambiental em curso. São perdas que ninguém vê. Mas seguem latentes e sem reparação.

Localizado no extremo sul do Recife, na divisa com o município de Jaboatão dos Guararapes, o bairro de Monteverde, onde vive a líder comunitária Dalva Damares, foi a localidade que registrou o maior número de vítimas fatais durante a tragédia que provocou enchentes e deslizamentos pela Região Metropolitana do Recife (RMR) em 2022. De acordo com a comunidade, 47 pessoas morreram e centenas de famílias perderam suas casas e pertences. Gente que até hoje permanece sem acesso à moradia digna. De acordo com a Defesa Civil de Pernambuco, em todo o estado, 133 pessoas morreram, entre elas 23 crianças. Milhares ficaram desabrigadas.

A tragédia, segundo um levantamento realizado pela iniciativa internacional de cientistas climáticos, World Weather Attribution, é um dos efeitos causados pela intensificação das mudanças climáticas que tem relação direta com a interferência humana a partir, principalmente, do uso de combustíveis fósseis e desmatamento. Mas, embora as tragédias de períodos de fortes chuvas estejam relacionadas às mudanças climáticas e degradação socioambiental, elas poderiam ser minimizadas com ações do poder público. A omissão é evidente manifestação do racismo ambiental.

Pouco mais de dois anos dos deslizamentos provocados pelas chuvas, ainda é possível encontrar em Jardim Monteverde o rastro da destruição que, mesmo com vítimas fatais, ainda carece de soluções preventivas efetivas, além de ações de reparação para os moradores da comunidade. “As prefeituras não querem arcar com os danos, o estado também não quer arcar com os danos, muita gente ainda está sobrevivendo apenas com trezentos reais do auxílio moradia e esse dinheiro dá para pagar um aluguel? Não dá, por isso muita gente permanece nas áreas de risco. A gente luta para que as pessoas possam receber indenização pelas casas que perderam ou que entreguem os habitacionais prometidos para as famílias, mas nada acontece. Tem gente que espera por uma moradia digna há mais de trinta anos aqui e nada”, contou Dalva Damares.

Desde 2000, quando ocorreram outros deslizamentos nas áreas, os moradores de Jardim Monteverde já esperavam por um habitacional prometido pela Prefeitura do Recife. Uma espera que se tornou mais urgente com o evento de 2022. A falta de políticas públicas refletem as maiores consequências para os desastres ambientais causados pelas mudanças climáticas, apenas os altos índices de chuvas não explicam tantas mortes e desabrigados.

Presidente da associação de moradores de Jardim Monteverde, Dona Dalva – como é conhecida pela comunidade – tomou para si a missão de manter o diálogo com as gestões públicas a fim de garantir que as reivindicações dos moradores sejam atendidas. Ela também realiza ações como a distribuição de sopão e o brechó solidário. Na sala da associação, que atualmente funciona em um espaço da casa do morador Wildis da Silva, que cedeu seus aposentos de forma gratuita, a líder comunitária recebe a visita de diversos moradores ao longo do dia e também faz ligações para conseguir doações para a comunidade.

Atuando de forma incidente para garantir que as famílias que vivem em áreas de risco tenham direito a uma moradia digna, pressionando os governos municipais, estaduais e federal e mobilizando a sociedade civil, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) de Pernambuco tem sido protagonista nas políticas de habitação da Região Metropolitana do Recife.

O movimento social é responsável por gerir ocupações na cidade do Recife que abrigam centenas de famílias que vivem em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Para a coordenadora nacional do MTST, Jô Cavalcanti, a mudança climática é um fator que agrava ainda mais a situação de risco dessas famílias e expõe ainda mais a necessidade da incidência de uma política de habitação eficaz.

“Em 2022 tivemos a tragédia causada pelas fortes chuvas, em 2023 nós não tivemos tanta chuva assim, mas as questões climáticas estão presentes e os órgãos públicos precisam estar cientes que existem essas famílias que moram em áreas de risco e assim realizar um planejamento de habitação de interesse social não só os habitacionais, que também são importantes, mas também as moradias assistidas e planejamento de moradias de interesse social, com indenizações que contemplem as famílias para comprar casas em boas condições e não indenizações de baixo custo que não servem nem para dar a entrada no financiamento de um imóvel”, declarou Jô Cavalcanti.

“É preciso pensar também na ocupação dos imóveis que existem no Centro da cidade, que estão desocupados e sem uso. De acordo com nosso levantamento, são mais de quarenta imóveis nessa situação, e que poderiam ser destinados para moradias de interesse social”, concluiu a coordenadora do MTST.

Com a voz embargada, Dona Dalva fala sobre a situação da comunidade após as chuvas que ocorreram em maio de 2022: “Estamos numa área limítrofe entre Recife e Jaboatão e por isso as prefeituras ficam uma jogando a responsabilidade para a outra e quem sofre com isso somos nós, moradores. O posto de saúde, por exemplo, os atendimentos psicológicos acontecem quase todos no posto da prefeitura de Jaboatão e os moradores que possuem comprovante de residência de Recife ficam sem acesso aos atendimentos. E a questão da moradia nem se fala, muita gente ainda não tem casa para morar e vai morar na casa de algum parente ou fica em locais de risco mesmo porque não têm condições de ir para outro lugar, porque até para receber o auxílio de trezentos reais é uma burocracia”. De acordo com a liderança, quem tiver qualquer vínculo empregatício que pague um salário mínimo não pode receber auxílio.

”Você precisa ser pobre e miserável

para poder ter direito ao mínimo de assistência”.

Um estudo coordenado pela Secretaria Especial de Articulação e Monitoramento, e divulgado pelo Ministério da Casa Civil em maio deste ano, revelou que Pernambuco é o terceiro estado do país com a maior proporção da população vivendo em áreas de risco de desastres naturais. Entre os municípios do estado, Recife e Jaboatão aparecem como locais mais vulneráveis e suscetíveis aos desastres. O levantamento identificou também os desastres ambientais no Brasil entre 1991 e 2022. Foram registrados 23.611 eventos, 3.890 óbitos e 8,2 milhões de desalojados ou desabrigados decorrentes de inundações, enxurradas e deslizamentos de terra.

A capital pernambucana é a cidade com maior número de pessoas vivendo em situação de risco, com 206 mil pessoas morando de forma vulnerável, o que representa 13,8% da população. Em seguida está Jaboatão dos Guararapes, com 188 mil pessoas nesta situação, que corresponde a 29,2% dos moradores da cidade. É entre estas cidades que a comunidade de Jardim Monteverde está localizada.

Também moradora de Jardim Monteverde, Idja Ferreira viu o sonho de uma vida ser destruído e soterrado durante as chuvas de 2022. “No dia da tragédia eu estava em casa e a minha filha estava deitada e aí ela viu as barreiras caindo, uns pedacinhos das barreiras, ela disse “mãe, a barreira tá caindo”. Eu disse ‘tá não’, inclusive, ia ter um culto e eu ia, só que com a gritaria de algumas pessoas que viram as barreiras que estavam caindo, a gente foi tendo a noção que realmente tava tendo umas quedas e aí foi que começou aquele desespero dos vizinhos correndo, dizendo “a barreira tá caindo”.

Jardim Monteverde é uma comunidade onde centenas de casas estão construídas sobre barreiras e encostas, áreas com alto risco de deslizamento em caso de chuvas que encharcam e sensibilizam o solo. Idja lembra que foi uma sequência de quedas de barreira em questão de minutos. “Quando eu vim tomar conta do que tava acontecendo, que eu vi que era um caso sério mesmo, os vizinhos correndo, indo pra minha casa, eu fiquei desesperada, mas o todo tempo a gente tava tentando consolar um ou outro, ajudar. Os vizinhos vinham pras moradias tentar tirar as pessoas que estavam soterradas, meus meninos também tentaram tirar outras pessoas”. Uma barreira atrás da casa de Idja também desabou. “Meu menino saiu, em questão de cinco minutos, por pouco ele não morreu”, relembra.

A moradora de Jardim Monteverde era responsável pelo Ministério Infantil Yaohushua, um projeto social que atendia as crianças da comunidade. No local, ela realizava ações, doações de brinquedos, além de ponto para as famílias e seus filhos. “Agora, não existe mais, perdi meu espaço, está tudo embaixo da terra e eu não consegui recuperar nada. Eu sinto muita falta porque arde dentro do meu coração o desejo de ajudar as outras pessoas, inclusive a própria equipe que vem aqui, de trabalho, do governo, que tão ajudando a comunidade, muitas das vezes tão sem ponto de apoio, se eu tivesse o meu eu ajudaria”, declarou Idja.

Atualmente, ela mora em um imóvel da família que está localizado bem em frente à barreira que desmoronou e, no local, ainda é possível encontrar alguns brinquedos do seu projeto social. Durante os deslizamentos, Idja também perdeu amigos de infância, uma família inteira que foi soterrada e que era vizinha da educadora social: “a missionária Flávia, o marido e o filho, e também Rayonara, que foi uma menina que a gente conseguiu resgatar ainda com vida, mas infelizmente ela não sobreviveu”.

No local em que houve o deslizamento da barreira, é possível encontrar pessoas trabalhando na construção de um muro de arrimo, porém, passado pouco mais de dois anos da tragédia das chuvas de 2022, a obra ainda parece estar longe de acabar. “Quem começou a obra foi a prefeitura de Jaboatão, mas por algum motivo, que eu não sei, quem está responsável pela obra agora é o governo do estado. Inclusive, se você reparar, uma parte da barreira que foi construída está incompleta e ainda temos muitas casas que estão em áreas de risco”, contou a dona de casa.

Idja ainda não foi indenizada pelo imóvel que perdeu na queda da barreira, mas está em diálogo com representantes do Governo do Estado para ser beneficiada pelo programa Morar Bem. A iniciativa, anunciada em março deste ano, é direcionada a famílias de baixa renda. O programa prevê subsídios de até R$ 20 mil pelo “Entrada Garantida” para pagar a entrada do financiamento de um imóvel. Entre os requisitos para se cadastrar no Morar Bem, estão: morar em Pernambuco; ter renda familiar de até dois salários mínimos; não ser proprietário, promitente comprador ou possuidor a qualquer título ou concessionário de imóvel; ter aprovação da Caixa Econômica Federal da documentação do cadastrado e da operação de crédito individual; e não ter sido beneficiado por atendimento habitacional definitivo.

De acordo com Dalva Damares, a associação de Jardim Monteverde e seus representantes chegaram a protocolar mais de 400 denúncias contra as prefeituras de Jaboatão e de Recife. “Eu acredito que o Governo do Estado teve que interferir e se responsabilizar pela situação porque os municípios estavam sendo negligentes”, afirmou a líder comunitária.

Um levantamento divulgado pelo Ministério da Casa Civil aponta que aproximadamente um milhão de pessoas em Pernambuco vivem em áreas vulneráveis às mudanças climáticas. O número corresponde a 11,6% da população do estado e coloca Pernambuco em terceiro lugar entre as unidades da federação com maior percentual de pessoas vivendo em áreas de risco, tendo 106 municípios considerados vulneráveis.

O Recife é a cidade com maior número de pessoas vivendo em situação de risco, com 206 mil pessoas morando de forma vulnerável. Em seguida está a cidade de Jaboatão dos Guararapes, com 188 mil pessoas em situação de vulnerabilidade. Os dados foram divulgados por um estudo coordenado pela Secretaria Especial de Articulação e Monitoramento, vinculada ao Ministério da Casa Civil, com base em um levantamento feito com dados do período entre 1991 e 2022.

O estudo alerta que estes municípios devem priorizar as ações de prevenção aos desastres climáticos. A reportagem tentou contato com os municípios de Jaboatão do Guararapes e Recife, e também com o Governo do Estado de Pernambuco, para saber quais medidas preventivas e ações estão sendo tomadas para prevenir tragédias como as de maio e junho de 2022, com incidência de enchentes e deslizamentos de barreiras, porém, até o fechamento da matéria não obteve retorno.

Há cerca de cinco quilômetros de distância de Jardim Monteverde, outro bairro, que também está localizado em uma área limítrofe entre Jaboatão e Recife, sofre até hoje as consequências da falta de moradia agravado pelas fortes chuvas de maio de 2022: o Ibura.

Moradora do local há 35 anos, Lívia Lins, conviveu com as barreiras durante toda a sua vida, e sempre temeu que sua casa fosse destruída por um deslizamento de terras. Situação de medo e vulnerabilidade que só se agravou após o ocorrido de 2022. “Eu convivo com as barreiras desde criança porque a casa onde eu morava era a casa de meus avós, que depois passaram para os meus pais, era uma herança da família”, disse Lins.

“Foi bem assustador. Eu lembro que quando aconteceu foi um barulho muito grande. Um barulho assim, que eu nunca mais vou esquecer. Parecia um trovão, uma coisa bem forte, só que estava muito perto. Era umas seis e pouca da manhã, meu marido e eu saímos pela porta de trás da casa e quando a gente viu tinha caído a barreira. Por sorte, a minha casa não caiu, mas ficou muito perto, a área de quintal que a gente tinha, a gente perdeu tudo, não tinha mais. Ficou bem no pezinho da casa mesmo”, contou Lívia Lins, que no dia do ocorrido – 29 de maio de 2022 – estava em casa com seu marido e suas três filhas.

Atualmente, a dona de casa mora em outro imóvel, há cerca de 500 metros da sua antiga residência, que foi demolida pela defesa civil devido ao risco de desabamento que apresentava. Porém, a moradora levou mais de um ano para conseguir deixar a área de risco por falta de apoio do poder público. “A prefeitura de jaboatão aconselhou todos a saírem dali do morro só que a gente ia sair pra onde? Porque eles não deram auxílio a ninguém. Não deram suporte nenhum, na verdade. O auxílio só veio começar a ser pago no final de 2023, depois de mais de um ano da tragédia”, disse Lívia.

“Eu permaneci naquele local por um ano ainda, imagina o medo que eu tive. Tinha muita gente procurando casa e a gente não conseguia achar nenhuma que atendesse às nossas necessidades e que desse pra gente pagar, por isso a gente só conseguiu se mudar em outubro de 2023. Meus planos era não passar o inverno de 2023 lá e eu acabei passando. E eu só pensava ‘se cair de novo dessa vez a minha casa vai junto, porque estava no pé da barreira, mas graças a Deus não aconteceu nada”, concluiu a moradora.

Lívia, assim como centenas de moradores, precisaram contar com a sorte em um cenário onde as políticas públicas de prevenção e reparo de danos ainda não parecem ser eficientes. E isso fica evidente ao andar pelas ruas da UR-10*, no Ibura. É possível ver diversas casas ainda habitadas que estão nas beiras das encostas de barreiras e que têm como “proteção” as lonas pretas, muitas delas rasgadas. Poucas são as barreiras que possuem contenções definitivas feitas com materiais de alvenaria e concreto.

Vivendo de aluguel e recebendo o auxílio moradia no valor de R$ 300, Lívia Lins não recebeu nenhuma indenização por seu imóvel que foi demolido pela prefeitura e é mais uma na fila de espera para conseguir vaga em um habitacional. “A gente está aguardando, mas não há nenhuma perspectiva da entrega desse habitacional e pelo que nós vemos aqui não tem nenhuma obra de construção habitacional sendo realizada pela prefeitura de Jaboatão no momento”, afirmou a dona de casa.

Procuramos a Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes para questionar as obras dos habitacionais que serão direcionadas às famílias que foram vítimas dos deslizamentos das barreiras e enchentes de maio de 2022, mas até o fechamento da matéria não tivemos retorno.

Sobre os destroços de onde um dia foi a sua casa, Lívia Lins lamenta suas perdas: “eu evito vir aqui, porque me dói ver tudo destruído, é uma coisa que dinheiro nenhum paga. Ver a casa onde eu cresci, onde minhas filhas nasceram, onde vivemos tantas coisas, assim destruída, é uma perda inestimável. Fora as pessoas que conviveram com a gente uma vida toda que tiveram que sair daqui também e aqueles que perderam suas vidas”.

*UR é uma abreviação de “Unidade Residencial” que são as subdivisões do bairro da Cohab, localizado em Jaboatão dos Guararapes.

A sensação de insegurança tem sido uma companhia constante para a dona de casa Sandra Maria Pereira, de 58 anos. O inverno virou a estação do ano mais temida por ela que sabe bem o que a intensificação das chuvas representa para a comunidade Jardim Fragoso, que convive com um canal a céu aberto há anos. “Aqui, nós somos esquecidos”. A frase reflete um sentimento de abandono persistente entre moradores e moradoras de um bairro que historicamente sofre com o desequilíbrio climático que, na última grande chuva que atingiu o Recife, em 2022, gerou prejuízos até hoje sentidos.

Sem coleta de lixo adequada e infraestrutura básica comprometida no bairro, o volume da chuva faz com que o canal que atravessa a comunidade em que vive há quase 30 anos transborde. “Quando chega o inverno, toda vez a encosta da beira do canal racha todinha e cai. Quando entra algum carro, ela vai cedendo mais. Então, fica aquele buraco com muita água e lama”, contou.

Sandra convive com o descaso desde que a obra do Canal Fragoso foi iniciada, em 2013. Ao passo que a obra avança, a olindense percebe uma grande mudança na paisagem e também na segurança na própria moradia e dos vizinhos. Ao longo do tempo que mora na região, testemunhou alagamentos, que transbordavam o canal, mas não chegavam às casas. Agora, com o volume de chuva maior devido às mudanças climáticas, os sinais de alerta soam mais alto.

Em 2022, em Olinda, o acúmulo das águas das chuvas chegaram a 60 milímetros, segundo dados das estações de monitoramento do Centro Nacional de Previsão de Desastres. Nesse período, Sandra e seu marido, o pedreiro Carllindo Idelfonso Pereira, 59 anos, tiveram a sua casa invadida pela água, que preencheu todos os espaços com pressa. Desta forma, a residência em que vive com sua família entrou para as estatísticas das 68 mil residências danificadas, segundo os dados do Sistema Integrado de Informações a Desastres (S2iD), do Ministério de Integração e Desenvolvimento Regional.

“Passou mais ou menos uns quatro dias para a água secar. E quando você andava na rua parecia uma rua fantasma porque você só via móveis no meio da rua”, relatou Sandra, em relação às enchentes de 2022. Na primeira vez, a água chegou na cintura e deu perda total no carro do seu filho, que na época morava com a esposa na casa da mãe. Além disso, a enchente foi tão severa que alcançou a casa dos fundos, onde seu outro filho reside com a esposa e o filho.

“Meu filho mora aqui atrás, a água foi até a casa dele. Então, não tinha nem como eu ficar por lá. Daí, eu falei com meus irmãos e com maior sacrifício meu esposo construiu aqui em cima, porque eu estava cansada de perder minhas coisas”, relembrou a olindense, que revelou que construções emergenciais são comuns na comunidade. O primeiro andar foi erguido em cima da casa inutilizada entre o final de 2022 e início de 2023. “Nesse meio tempo que parou a chuva foi agilizando esse processo da construção. Nós ficamos na casa do meu filho e enquanto ele fazia”, relatou Sandra.

As faltas e consequências à saúde mental

Apesar de estar “segura”, Sandra ainda carrega os traumas das perdas, que não foram apenas materiais. Com o inverno, chega também a falta de sono, a necessidade de se automedicar e o medo pela vida da vizinhança. “Tenho medo de quando tá chuva forte com ventania. Tenho medo das telhas voarem, porque uma vez a chuva e o vento estavam tão fortes que estava levantando elas. Meu marido pegou uma corda amarrou nas telhas e botou um ferro e amarrou aqui na escada. Fiquei com tanto medo que eu não dormi”, contou.

A falta de sono é um ritual involuntário da dona de casa que também se preocupa com a vizinha Maria Ferreira do Carmo, de 80 anos, que vive o mesmo drama. Quando fica ilhada, a idosa com baixa mobilidade precisa ser resgatada pelos seus filhos, netos ou vizinhos.

“Quando não tem ninguém eu tenho que botar um negócio para subir aqui mesmo fica mais perto”, afirmou a idosa, que mora na localidade desde 1976. Maria Ferreira disse ainda que recebeu doações para repor os móveis perdidos. “Tá tudo acabado! Tem armário agora, porque antes eu estava: ‘Meu Deus, onde é que eu vou botar minhas panelinhas?’ Mas, tá lá no chão, guarda-roupa também quebrado, todos [os móveis] assim. Tem um sofazinho velho que foi a minha nora que deu e o resto tá acabado. Não tem uma cadeira. Não tem nada”, exclamou a veterana, que mora sozinha na residência.

Na área também é possível notar poucas crianças circulando na rua. “Descendo ali na ponte tinha um colégio, que até foi fechado. Esse menino estudava lá, mas teve muita água e acabou com tudo”, lamentou Sandra, sobre seu neto André William Pereira, de 13 anos. O bairro não possui espaços de convivência para crianças, adultos ou idosos, o que demonstra ainda mais a omissão do Estado e Município.

Diante de todo esse contexto de desumanização, a psicóloga clínica e social Maria Luiza dos Santos afirma que todas essas faltas representam a manutenção das violências contra a população seja do ponto de vista material e simbólico.

“Pessoas que perdem as coisas constantemente estão em constante alerta. É uma situação de violência psicológica, porque a pessoa está sofrendo. Vejo essa demanda como uma demanda de saúde coletiva e de falta de atenção no sentido ampliado mesmo, desde as questões básicas em relação às estruturas desse local até o momento mesmo em que acontece uma tragédia”, disse a psicóloga.

Os sintomas causados pela exposição ao perigo contínuo podem ser associados ao Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), uma patologia que surge a partir da ansiedade. Entre os sintomas do transtorno estão os pensamentos intrusivos, pesadelos e flashbacks; esquiva de lembranças do trauma; cognições negativas e mau humor; hipervigilância e distúrbios do sono.

“Estou falando do TEPT, mas é como uma possibilidade de adoecimento, mas assim é impossível ter saúde mental. Não em constante em risco de vida. O racismo ambiental vem de um lugar muito muito basilar, que exige a garantia de direitos básicos da gente, de moradia, de saúde e de integridade física. Sem isso, as pessoas em situação de estresse vão perdendo até as lembranças e os registros. E a saúde da gente também é sobre isso é sobre estabilidade é sobre lembrança”, finalizou.

Dignidade roubada pelo racismo ambiental

O descaso coloca a comunidade de Jardim Fragoso em contato com uma variedade extensa de doenças por bactérias de veiculação hídrica que tem relação direta com a falta de tratamento da água e do esgoto. Essas infecções podem ser a causa das famosas viroses, diarreias, leptospirose e outros micro-organismos perigosos à saúde humana.

“A gente evita entrar na água, mas aqui na rua teve três casos de leptospirose e teve dois de pneumonia e na outra rua por conta dessas água daí ficou internado um rapaz”, relatou Sandra. Além disso, ela também expõe o convívio com animais silvestres, como jacaré e cobras que se abrigam nas águas turvas do canal.

Apesar das reclamações da população, que são amplamente difundidas na mídia, Sandra relata que a Prefeitura de Olinda mantém o foco voltado para “benefícios” que não atendem as necessidades básicas das famílias que moram nas comunidades próximas à PE-15.

“Aqui não se faz nada. A única coisa que a prefeitura mandou fazer foi uma praça, uma zumba. Que benefício é esse? Isso não é uma prioridade. Não é mesmo. O que a gente queria era não levar mais água”, declarou a dona de casa sobre a prefeitura.

Histórias como essa são comuns nas periferias de Pernambuco. Uma pesquisa realizada pelo Ministério da Casa Civil revelou que um milhão de pessoas do estado vivem em áreas vulneráveis às mudanças climáticas. Esse número corresponde a 11,6% da população pernambucana e apresenta Pernambuco como o terceiro lugar das unidades da federação com maior percentual de pessoas vivendo em áreas de risco, atrás apenas da Bahia (17,3%) e do Espírito Santo (13,8%). Em 2023, houve cerca de 58.605 deslizamentos ou inundações no município de Olinda.

Os dados denunciam a problemática do saneamento básico, que parece ser um privilégio destinado às áreas seletas de Olinda, cidade conhecida pelo Carnaval e seu conjunto arquitetônico histórico. Na verdade, a propaganda turística maquia a ineficiência do fornecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, drenagem e manejo das águas pluviais urbanas. Entre as pessoas sem acesso ao abastecimento de água, mais da metade (66%) é de pretos e pardos e 70,2% dos que vivem sem água tratada estão abaixo da linha da pobreza (com renda inferior a R$ 417,45 por mês), de acordo com dados do Instituto Trata Brasil. .

O descaso com a dignidade da população preta e periférica do Recife, Olinda e Jaboatão dos Guararapes é só mais um resquício de uma herança colonial que persegue as pessoas mais pobres, negras e não brancas do Brasil como explica o geógrafo e mestre em Geografia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Diosmar Filho.

“Se você não tem uma boa estrutura de saneamento, um bom abastecimento de água, se a água não chega em quantidade e qualidade, você não vai ter boas condições de saúde. Então, você está sempre vulnerável!”, declarou o geógrafo. Diosmar também faz uma análise sobre como a população mais vulnerável é vista e, portanto, tem o acesso aos direitos essenciais negados em função da estrutura criada pelo racismo ambiental.

“A vulnerabilidade climática está no campo das desigualdades etnoraciais e de gênero. Essas [pessoas] vivem em áreas onde você não tem infraestrutura e condições de vida, porque aquilo que são os direitos fundamentais estão totalmente corrompidos para o acesso e a efetividade na vida dessas pessoas”, disse o pesquisador.

Para exemplificar, Diosmar comenta como funcionam as engrenagens que menosprezam a existência das camadas da sociedade que povoam boa parte do país. “As condições de viver nas encostas é onde o poder público nega o direito a uma infraestrutura, o seu direito, o direito de também não só quando acontecer uma tragédia, mas antes da tragédia lhe tirar ele [o direito] e colocar em condições de moradia em outros lugares. É, ao final, a gente vai optar por contar corpos. A história vai ser sobre a tragédia, não pela negação de direitos que fez com que uma comunidade, ribeirinha e encosta virou uma morada de risco”, explicou.

Por fim, a fé aparece como o único porto seguro para pessoas que moram próximo ao Canal do Fragoso, que tem previsão de término da obra em 2025. Mas, até o momento, há planos para desacelerar os danos potencializados pelas mudanças climáticas.

Com incentivo do Instituto FALA, a Afoitas desenvolveu uma série que percorreu três comunidades que sentem, no cotidiano e na saúde mental, os efeitos do colapso ambiental em curso e da falta de assistência do poder público. As matérias contam histórias de pessoas que foram impactadas pelo evento climático ocorrido entre os dias 28 e 31 de maio de 2022, que entrou para a história de Pernambuco e do Brasil como uma das maiores tragédias urbanas da década. O grande volume de chuvas e o alto índice da população que mora em locais de risco, suscetíveis a enchentes e deslizamentos de barreiras, resultou na morte de 133 pessoas, além de milhares de desabrigados.

Textos: Giovanna Carneiro e Maya Santos

 Imagens: Thays Medusa

 Projeto gráfico: Amokachi

 Edição: Lenne Ferreira

 Coordenação: Pedro Borges

 Edição do vídeo: Beatriz Veloso

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