Por Beatriz Souza
Morador de um dos morros mais altos da favela da Charneca, no município do Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, Matheus Monteiro se mantém em constante estado de alerta, na ida ou na volta para casa. Resistir às dificuldades, sendo um jovem preto de 17 anos em um bairro comandado pelo tráfico de drogas, é um ato de valentia.
Dificuldades que o afetam dentro e fora de casa. Matheus mora com a mãe e o pai dela, seu avô, que enfrenta graves problemas de saúde e precisa ser levado quase todos os dias para hospitais no Recife, a 40 quilômetros dali, já que no Cabo não há centros especializados para o tratamento. Sua mãe tem que dar conta da casa, do filho, do pai e do trabalho como cuidadora de crianças atípicas. Atualmente está desempregada.
Para isso, a mãe conta com a ajuda do filho, que nem atingiu a maioridade e já sente o peso do mundo nas costas, vivendo em uma cidade que é a mais vulnerável de Pernambuco para um jovem negro viver, segundo o Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ) à Violência, da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco).
O cotidiano de Matheus é igual ao de outros jovens que buscam por oportunidade de emprego e uma vida melhor para dar boas condições de vida à família. Com uma exceção: o trajeto que ele faz em um dia da semana, a ida ao centro da cidade para os encontros do Fórum de Juventudes do Cabo, o FOJUCA.
Matheus é integrante do Fojuca desde 2023. Ele foi convidado pelo professor de sociologia, Matheus Mariano, para participar do processo da Pré Conferência Municipal de Juventude que o FOJUCA estava organizando. Desde então, gostou e resolveu ficar. Mas por quê?
O INÍCIO
O FOJUCA surgiu em 2015, como uma reação à realidade letal enfrentada pela juventude negra do Cabo de Santo Agostinho, conhecida como “Cidade da Morte” pelo alto grau de violência. Nesse contexto, Cássia Jane, Manina Aguiar, Hyldiane Lima, Nivete Azevedo e outras militantes de direitos humanos, à frente do Centro das Mulheres do Cabo (CMC), convocaram uma caminhada chamada Ato pela Paz, que reuniu 5 mil pessoas.
Percebendo que as juventudes não se faziam presentes na luta por direitos, essas mulheres plantaram a semente nos bairros por meio de mobilizações e processos formativos com o objetivo de incentivar a construção de um grupo de jovens que representasse a cidade na luta por políticas públicas direcionadas. Foi aí que grupos de jovens de diversos segmentos, de estudantes a artistas e skatistas, entre outros, decidiram criar um fórum que funcionaria como um espaço de articulação para transformar a cidade.
“O FOJUCA se constituiu um cenário com a juventude discutindo, monitorando e cobrando políticas públicas. Posteriormente, outros grupos, coletivos e ações foram ebulindo, guiados pelas discussões que haviam sido feitas no/pelo Fórum, dando início a outras movimentações na cidade”, destaca Elaine Mendonça, membra fundadora do Fojuca.
Desde o seu surgimento, em 2015, o FOJUCA se tornou uma referência para a juventude, apesar dos inúmeros desafios. A cientista social e especialista em gênero e desenvolvimento de políticas públicas Cássia Jane, também moradora da Charneca, relata: “As juventudes começaram a discutir e monitorar política pública. A gente tem um novo perfil dos jovens no Cabo. Antes do FOJUCA, inclusive, não se falava no Conselho da Juventude e a Secretaria de Juventude fazia as políticas e não consultava a juventude. A pauta da juventude começa a
ser visibilizada”.
Matheus, que nunca havia debatido política pública, muito menos para a juventude, chegou no FOJUCA em um momento de efervescência e novas descobertas. Ele aprendeu na prática o que o professor de sociologia ensinava na teoria: a importância da política no dia a dia das pessoas. Ele não imaginava que, a partir de um simples encontro, muitas coisas iriam mudar. Quando Matheus chegou, o FOJUCA debatia previamente as propostas que os jovens queriam levar para a 3ª Conferência Municipal de Juventude, que não acontecia há oito anos. Dias depois, todas as propostas foram aprovadas na íntegra pelos participantes. Uma conquista para o grupo e também para ele, que havia participado da construção coletiva.
O QUE FAZEM
O FOJUCA atuou inicialmente no campo formativo e político, com membros se voluntariando para mediar e participar de formações e encontros em que o diálogo e o aprendizado davam origem a trocas plurais e ricas. Para além de uma escola política, era um lugar seguro de encontro para os jovens, um ambiente potencializador de trocas e relações afetivas, e de possíveis oportunidades de carreira e futuro.
Como exemplo disso, há membros do coletivo que, através do seu contato com os debates sobre a realidade do município, direcionaram suas pesquisas acadêmicas para o contexto da cidade, contribuindo para o acervo científico a respeito da cidade do Cabo. Todos que já participaram do FOJUCA dizem ter sido impactados de alguma forma.
É o caso de Elaine, autora de uma pesquisa sobre os impactos socioambientais do Complexo Industrial-Portuário de Suape (CIPS) na comunidade tradicional de seu entorno. Outro trabalho que é fruto dos debates acerca da vulnerabilidade juvenil dentro do FOJUCA é o de Matheus Mariano, mestre em sociologia e estudante de direito, também integrante do coletivo, além de professor do jovem Matheus Monteiro, que vem desenvolvendo pesquisas relacionando segurança pública, juventudes e ambiente escolar. São exemplos do olhar crítico para a própria cidade e a contribuição científica deixada para o município.
Através do coletivo, muitos jovens de diversos territórios puderam trocar conhecimento e se conhecerem, construindo ações e estabelecendo trocas afetivas, fortalecendo a união e os laços, bem como o sentimento de esperança para construir uma cidade melhor.
OS IMPACTOS
As ações de FOJUCA englobam a denúncia da violência no Cabo, que atinge principalmente os jovens negros, somada Às denúncias sobre os impactos do Complexo Industrial-Portuário de Suape (CIPS), que acabou por aumentar essa violência e o mercado ilegal de drogas na cidade.
Através do FOJUCA, pautas como essas ganharam espaço na mídia nacional e internacional, trazendo atenção e olhares para o Cabo e abrindo um campo de diálogo sobre segurança pública que não existia na cidade. Não se falava do papel do jovem na produção da violência, e nem em criar políticas direcionadas a essa juventude antes do ativismo do FOJUCA. Após o surgimento do Fórum, lideranças políticas e pré-candidatos à prefeitura do Cabo passaram a falar sobre essa temática. “Isso não aconteceria se o FOJUCA não estivesse batendo na tecla através de denúncias, falando na TV aberta, falando na rádio, falando em jornais impressos, projetos, levando para congressos e seminários. O ativismo desse grupo colocou no debate que isso não é um problema individual, de caráter do jovem, e sim sistemático, estrutural”, afirma o sociólogo Matheus Mariano.
O FOJUCA também atuou denunciando práticas de gestões que prejudicam a cidade, consequentemente as juventudes. Pressionando e cobrando os prefeitos e os vereadores, indo até a Câmara Municipal, fazendo audiências, atos públicos e monitoramento das políticas públicas, produziu reconhecidas ações de incidência política.
Outras ações que impactaram centenas foram as formações políticas através da cultura, que conscientizavam os jovens sem esquecer do festejo. O FOJUCA, os Diálogos na Praça e o Fetsival SOMA, feitas anualmente no mês de agosto, mês emblemático para a luta das juventudes, tomaram uma dimensão politica marcante.
O FOJUCA FEST foi criado com a intenção de unir os jovens, ocupando escolas, propiciando debates acerca das realidades da cidade, oficinas artísticas de grafitti, fotografia, fanzines, com dança e música, pelos jovens e para os jovens, somando centenas de jovens nas três edições já feitas.
Os Diálogos na Praça foram pensados para acontecer de forma livre, nas ruas, em equipamentos públicos já existentes, como praças, com a ideia de utilizar esses espaços para diálogo e troca de conhecimento.
O festival SOMA pelo Direito à Cidade chama atenção para a falta de apoio e incentivo à cultura. o SOMA acontece em praças publicas da cidade e em suas três edições já contou com mais de 70 artistas, mesmo sem apoio das gestões municipais. O festival gerou pelo menos 40 empregos diretos e mais de 80 indiretos. Pela primeira vez o Cabo viu um festival independente com artistas jovens da própria cidade, que nunca haviam tido a oportunidade de pisar em um palco.
O jovem rapper Thaysa Ferreira, a Neguinha da ZS, conta como se sentiu ao participar do festival pela primeira vez: ” Foi um momento muito bom e uma atividade muito necessária para a juventude do Cabo. Fazer parte pra mim foi uma grande honra, inclusive quero mais, trouxe um impacto muito positivo pra mim. Lembro que, quando era mais jovem, vocês foram uma rede de apoio pra mim. O FOJUCA faz o barulho que tem que ser feito”.
A luta pelo Transporte Universitário também foi uma iniciativa do FOJUCA. Uma luta que já tem 9 anos de existência e que envolveu varias gerações de graduados, sem nenhum sinal de apoio das gestões municipais. No Cabo há centenas de estudantes universitários que estudam em Recife, Jaboatão dos Guararapes ou outras cidades do entorno, e chegam a passar 6 horas por dia no transporte público. Muitos desistem do curso, tanto pela exaustão quanto pela impossibilidade de conciliar com o trabalhou, ou mesmo por falta de dinheiro para as passagens. O FOJUCA movimentou campanhas, diálogos com prefeitos e vereadores, audiências públicas e articulações com outras cidades, mas nada disso é suficiente quando falta vontade política dos gestores.
Até hoje o FOJUCA é lembrado quando essa pauta vem à tona. Matheus Monteiro conta que, quando foi aprovado no curso de psicologia, precisava se deslocar, pois a faculdade era em outra cidade da Região Metropolitana: ” Já era um problema porque o Cabo não tem transporte universitário. Era coisa que no meu ensino médio eu não entendia, mas quando entrei no FOJUCA foi uma coisa que eu comecei a ver porque era importante”.
Também produziu impacto nas policitas publicas do município, na medida em que FOJUCA pautou a necessidade de um COnselho de Juventude, que depois ajudou a construir, sempre com muita pressao. Solicitado pela gestão do prefeito Keko do Armazém a participar do processo, o FOJUCA conquistou cadeiras no Conselho de Juventude, além de auxiliar no planejamento da 3º Conferencia Municipal de Juventudes do Cabo. A partir daí o coletivo ganhou grande visibilidade com a consquista de quatro bagas para a Conferência Estadual de Juventude e posteriormente duas vagas na delegação de Pernambuco da 4ª Conferência Nacional de Juventude, em Brasília.
A partir da ida à Brasilia, o coletivo articulou diálogos com membros do governo federal. Entregou uma carta a Ronald Sorriso, secretário nacional de juventude, e a Marcus Barão, presidente do Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE), e conversou com Tamires Sampaio, assessora especial do Ministério da Justiça e Segurança Publica e coordenadora do Programa Nacional de Segurança Publica com Cidadania (PRONASCI), e com Yann Evanovick, secretário de Politicas para a Juventude do Ministério da Educação (MEC). Toda essa moviemntação iria resultar na instalação do Centro Comunitário da Paz (COMPAZ), para reduzir a violencia. A instalação do CONVIVE no Cabo já tinha sido discutido em 2023, com Pedro Ribeiro, gerente geral da Secretaria de Criança e Juventude do Estado de Pernambuco, e pedida na carta ao secretário nacional de juventude.
Matheus Monteiro considera a conquista do CONVIVE algo marcante na trajetória do FOJUCA. “A instalação foi parte da luta do FOJUCA, da articulação e de muita incidência do coletivo”, afirma.
Pensando na continuidade da insegurança na cidade e da vulnerabilidade juvenil, o FOJUCA tem movimento do Projeto Cidade Segura pra as juventudes, que proporcionou diálogos e formações para alguns dos teritorios mais vulneraveis do Cabo, buscando construir com os jovens dessas diversas localidades um documento sobre que cidade essa juventude almeja. A partir disso se construiu uma Carta Manifesto, com as propostas desse juventude para um Cabo Mais Seguro. Do jeitinho FOJUCA, a Carta foi entregue às candidatas e candidatos à vereança e à prefeitura do municipio num grande evento no dia 31 de agosto, na Câmara dos Vereadores. mas não parou por aí. Os jovens de toda cidade farão um monitoramento de 100 dias de mandato, após as eleições, pra observar se esses candidatos e candidatas cumpriram com suas palavras. Ou melhor, assinaturas.
Marquinhos, jovem que participou da construção desse projeto e que conheceu o FOJUCA atráves disso, relata que essa ação ” está dando palco para dialogar, conversar e lutar por uma cidade onde os jovens se sitam confortaveis e seguros”. Para ele, foram importantes ” as dinamicas para debater os assuntos com outros jovens e perceber as carencias que a gente encontra, para assim levar para pôr em prática”.
Além disso, ainda no ano de 2024 o FOJUCA teve projetos aceitos pelo Instituto FALA e pelo Fundo Casa Socioambiental, que, para além de conteúdo dos projetos, poderão porporcionar para sues membros bolsas de ajuda de custo. Mesmo nãos endo de valores expressivos, as bolsas se tornam um incentivo para os membros continuarem na construção coletiva e na luta pela cidade melhor.
“Acho que alem do fato de conher pessoas incirveis e que smepre estão construindo coisas ocm a gente e de ter um ambiente onde a gente possa se expressar e se conectar com os outros jovens que passam pela mesma realidade, o FOJUCA me trouxe a esperança de construir uma cidade melhor”, afirma Matheus.
AS LIMITAÇÕES
O FOJUCA, por ser um grupo formado por jovens dispostos a mudar sua realidade, acaba por ter certas limitações. Entre elas, alcançar jovens de todo o teritorio. Tanto pela falta de recursos como pela falta de tempo, ja que os jovens que fazem do grupo precisam de suas ocupações externas para obter renda e estabilidade. Muitos jovens nao conseguem dar conta da militancia por esse mesmo motivo. Ser jovem por si só já é um desafio, e somam-se a isso os marcadores socioeconomicos e da cidade onde estão inseridos.
Para além dos desafios internos, há os desafios pelo qual os jovens passam desde a origem da organização. Diversas getoes ja passaram e nenhuma delas se preocupou ou se preocupa com as índices alarmantes de vulnerabilidade juvenil. Manter o coletivo funcionando durante a pandemia e diante das adversidades e do jogo politico sabotador da cidade foi uma tarefa extremamente dificil.
OS DESAFIOS
Hoje, mesmo com toda a luta, não há nenhum tipo de movimentação política por parte do Executivo e do Legislativo, que são quase inoperantes, para transformar a cidade com políticas públicas efetivas.
De acordo com dados do Mapa da Violência 2012 (Instituto Sangari), considerando as taxas de 2008 e 2010, o Cabo apresentou uma taxa média de homicídios de 77,7 por grupo de 100 mil habitantes, a terceira maior de Pernambuco naquela época. Já em 2022 o Cabo aparece como a 5° cidade mais violenta do Brasil, segundo a taxa de Mortes Violentas Intencionais que somou 81,2 (Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 2023). Em 2024, foi para a 8ª posição no ranking de número/taxa de homicídios estimados por 100 mil habitantes (Atlas da Violência – 2024). Apesar de a cidade ter decaído nos rankings de violência, o número de mortes letais continua grande.
Além disso, o Estado de Pernambuco contrariou a tendência nacional de diminuição dos assassinatos em 2023, menor valor em 16 anos. Pernambuco ficou em 3° lugar como estado onde houve maior aumento de homicídios no país.
Em uma cidade onde sobra violência e falta emprego, resta à juventude a opção do tráfico. De acordo com o censo de 2022 o Cabo possui apenas 21,46% da população ocupada em empregos formais. “Desde muito novo eu vejo muitos amigos meus se envolvendo no mundo das drogas, muita gente morrendo, muitos sendo presos e é uma coisa que choca, que me afetou e afeta bastante a minha vida”, afirma Matheus Monteiro, que abriu esse texto.
O QUE QUEREMOS
Pablo Carvalho, secretário de Defesa Social do Cabo, apesar de acreditar que a violência é um sintoma e a segurança pública uma atividade acessória, diz: “Embora os homicídios estejam diminuindo sistematicamente nos últimos nos últimos três anos, a gente ainda tem um quadro muito grave”.
Ainda que o secretário reconheça a necessidade de políticas de prevenção, as que existem se limitam à patrulha escolar e a palestras dadas pelos guardas municipais nas salas de aula, para crianças até o 9° ano do ensino fundamental.
Quando questionado sobre as políticas de prevenção de violência junto à juventude, Carvalho afirma que só há parceria com a Secretaria de Educação, e nesse caso não houve diálogo com as juventudes e nem ações feitas junto à Secretaria de Juventude e Esportes. Na prática, a política transversal e intersetorial não existe.
Compreender a juventude como potencial e não como um problema é uma das respostas para as questões colocadas aqui. Pensar, junto com a juventude, soluções para problemas que as envolvem, principalmente sobre a cidade que elas querem. Por que a solução está sendo pensada com a juventude fora da discussão, e apenas de cima para baixo?
É necessária a criação de uma política de segurança que não deixe de fora a juventude. O sociólogo Matheus Mariano frisa que uma política de segurança pública precisa ser transversal. “Transversal é uma política que pensa em segurança como um problema muito maior, além da repressão qualificada. Se não há uma política de prevenção, nunca vai haver uma repressão eficiente. Para fazer uma política de segurança é preciso não só pensar nos órgãos da segurança, mas também em escola de qualidade, saúde de qualidade, urbanismo, lazer, pensar em cultura, em formação técnica e profissional para essas juventudes. É também pensar em pessoas que já entraram em dinâmicas de violência e em inseri-las novamente na sociedade”, afirma. “No caso do Cabo, não posso pensar em uma política de segurança que não tenha como irmã uma política de juventude. Não temos e nunca tivemos uma política de juventude. Não tem como falar em política de segurança se não há uma Secretaria de Juventude que possa segurar esse problema para criar ações”. Ele também a necessidade de criação de um Plano Municipal de Juventude e de um Plano Municipal de Segurança.
É por tudo isso que o FOJUCA vem lutando desde 2015. Para que não haja mais políticas aleatórias e dependentes da vontade de gestão A ou B. É preciso enxergar que a juventude é potente e está lutando para mudar a realidade do Cabo, quer gostem ou não.